
O filme O Rei (2019), dirigido por David Michôd, é uma adaptação cinematográfica da vida de Henrique V da Inglaterra, interpretado por Timothée Chalamet. O longa-metragem se concentra nos anos anteriores à sua coroação e na lendária Batalha de Agincourt (1415), um dos eventos mais emblemáticos da Guerra dos Cem Anos. Embora o filme busque retratar a essência do período medieval, ele toma liberdades artísticas que divergem dos registros históricos. Neste artigo, exploraremos os fatos e as ficções presentes no filme, destacando o que é real e o que foi dramatizado.
1. A Juventude de Henrique V: Fato ou Ficção?
No filme, Henrique V é retratado como um príncipe rebelde e despreocupado, que passa seus dias em tavernas e se envolve em brigas. Essa representação tem algum fundamento histórico. De acordo com o cronista medieval Thomas Walsingham, o jovem Henrique (conhecido como "Príncipe Hal") era de fato conhecido por sua vida boêmia e por se associar com figuras questionáveis, incluindo o famoso cavaleiro Sir John Falstaff. No entanto, historiadores como Christopher Allmand argumentam que essa imagem pode ter sido exagerada para contrastar com sua transformação em um rei piedoso e disciplinado (Allmand, Henry V, 1992, p. 23).
Ficção: O filme exagera a rebeldia de Henrique, sugerindo que ele era completamente alheio às responsabilidades reais. Na realidade, mesmo em sua juventude, ele participava ativamente das campanhas militares de seu pai, Henrique IV.
2. A Relação com Falstaff: Uma Amizade Dramatizada
O filme retrata uma relação próxima e conflituosa entre Henrique e Falstaff, interpretado por Joel Edgerton. Embora Falstaff seja uma figura icônica nas peças de Shakespeare, ele é amplamente considerado uma criação literária, baseada em personagens reais como Sir John Oldcastle. A amizade entre Henrique e Falstaff, embora lendária, não é comprovada por fontes históricas confiáveis.
Fato: Henrique realmente se cercou de companheiros de taverna em sua juventude, mas a figura de Falstaff como retratada no filme é mais uma homenagem a Shakespeare do que um reflexo da história real.
3. A Batalha de Agincourt: Realismo e Licenças Artísticas
A Batalha de Agincourt (1415) é o clímax do filme e um dos eventos mais bem documentados da Guerra dos Cem Anos. O filme retrata com precisão alguns aspectos da batalha, como o uso do arco longo inglês e as condições lamacentas do campo de batalha, que dificultaram o avanço da cavalaria francesa. O discurso de Henrique antes da batalha, embora menos eloquente do que o famoso "Crispim" de Shakespeare, captura o espírito de liderança do rei.
Ficção: O filme sugere que Henrique liderou pessoalmente um pequeno grupo de soldados em uma missão noturna para assassinar o Delfim (herdeiro do trono francês). Não há evidências históricas de que isso tenha ocorrido. Além disso, o Delfim não esteve presente na batalha, ao contrário do que o filme mostra.
4. A Representação do Delfim: Um Vilão Fictício
No filme, o Delfim Carlos (interpretado por Robert Pattinson) é retratado como um antagonista arrogante e cruel. Embora o Delfim fosse de fato o herdeiro do trono francês, sua personalidade no filme é uma criação dramática. Segundo o historiador Juliet Barker, o Delfim real era um jovem inexperiente e não desempenhou um papel significativo na Batalha de Agincourt (Barker, Agincourt: The King, the Campaign, the Battle, 2005, p. 112).
Ficção: A cena em que o Delfim desafia Henrique para um combate individual é puramente fictícia. Duelos entre reis ou herdeiros eram raros e altamente improváveis em um contexto de guerra.
5. A Jornada de Henrique: Uma Narrativa Heroica
O filme retrata Henrique V como um líder que conquista o respeito de seus soldados ao compartilhar suas dificuldades e lutar ao lado deles. Embora isso seja uma simplificação, há elementos de verdade nessa representação. Henrique era conhecido por sua habilidade militar e por inspirar lealdade em suas tropas. O cronista Jean de Wavrin descreve Henrique como "um rei corajoso e justo, que nunca pediu a seus homens o que ele próprio não faria" (Wavrin, Chronicles, século XV).
Ficção: A jornada de Henrique como um príncipe perdido que redescobre seu propósito é uma narrativa dramatizada. Na realidade, ele já era um líder experiente antes de Agincourt, tendo participado de várias campanhas militares.
6. A Representação dos Soldados Comuns
Um dos aspectos mais interessantes do filme é a atenção dada aos soldados comuns, que são retratados como personagens complexos e humanos. Isso reflete uma tendência moderna na historiografia de focar nas experiências das pessoas comuns, e não apenas nas elites. No entanto, o filme exagera a influência desses soldados na tomada de decisões de Henrique.
Fato: A Batalha de Agincourt foi vencida em grande parte graças ao arco longo inglês, uma arma usada por soldados comuns. Esses arqueiros eram essenciais para o sucesso militar inglês.
7. A Coroação de Henrique V
O filme termina com a coroação de Henrique V, sugerindo que Agincourt foi o ponto de virada que consolidou seu reinado. Embora a batalha tenha sido um marco importante, Henrique já era rei há dois anos quando ela ocorreu. Sua coroação aconteceu em 1413, após a morte de seu pai, Henrique IV.
Ficção: A sequência da coroação no filme é emocionalmente impactante, mas historicamente imprecisa.
Conclusão
O Rei é uma obra que combina história e drama de maneira cativante, mas que toma liberdades artísticas para criar uma narrativa emocionalmente envolvente. Embora o filme não seja completamente fiel aos fatos históricos, ele captura a essência de Henrique V como um líder transformado pela guerra e pelas responsabilidades do poder. Para os entusiastas da história medieval, o filme serve como um ponto de partida para explorar a vida e o legado de uma das figuras mais fascinantes da Idade Média.
Fontes e Referências
Allmand, Christopher. Henry V. Yale University Press, 1992.
Barker, Juliet. Agincourt: The King, the Campaign, the Battle. Little, Brown, 2005.
Wavrin, Jean de. Chronicles of England, France, and Spain. Século XV.
Shakespeare, William. Henrique V. 1599.
Mortimer, Ian. 1415: Henry V's Year of Glory. Bodley Head, 2009.
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